Contabilização de gases de efeito estufa (GEE) vem prejudicando países produtores de alimentos

Um estudo feito pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) concluiu que é errado atribuir, emissões de carbono à produção de alimentos

Contabilização de gases de efeito estufa (GEE) vem prejudicando países produtores de alimentos

A contabilização das emissões de gases do efeito estufa (GEE) tem um viés que beneficia países produtores de petróleo e prejudica países produtores de alimentos, de acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).

Enquanto no caso do petróleo, quem responde prioritariamente pelas emissões de GEE são os países do final da cadeia, ou seja, quem consome o produto, no caso da produção de alimentos, quem responde pela maior parte da cota de emissões são os países produtores.

Por exemplo, se o Brasil produz soja, que é esmagada na China para produção de farelo, antes de virar óleo de soja no Japão, revendido para consumo do cidadão da Índia, é o Brasil, ao mexer na terra, preparar o solo, plantar e colher a comida, que assume a maior parte da carga de carbono gerada na cadeia de alimentos.

Ao desconsiderar as emissões da respiração humana, o IPCC inverte o raciocínio do sistema contábil para a produção de alimentos. Onde estão localizadas as emissões de carbono contidas no alimento? Se não estão na ponta do consumo, devem, então, estar nas etapas anteriores da cadeia. A solução contábil é distribuir a conta do clima na origem da cadeia, na ponta da produção de alimentos.

Porém, essa contabilidade do IPCC é especialmente relevante para países com grande cobertura florestal, como é o caso do Brasil. Quando um país como o Brasil planta soja, ele emite CO2? Para o IPCC, a resposta é “sim”, por meio de dois processos prioritários: mudança de uso da terra, considerada pela transição de vegetação natural ou outros usos, nos últimos vinte anos (por convenção); e as emissões na produção, somando emissões por fertilizantes e outros insumos.

No cálculo de pegada de carbono, todos os itens são somados. Há uma sequência de premissas passíveis de viés nos procedimentos. É importante que se discuta essa contabilização para garantir uma distribuição justa das emissões de gases do efeito estufa entre os países produtores de alimentos e países consumidores de petróleo.

Desmatamento

A ligação direta entre a produção de soja e o desmatamento da Amazônia é um equívoco. Embora a retirada da floresta seja indesejável por vários motivos, a atribuição é, muitas vezes, realizada de forma exagerada. A pesquisa aponta que a soja raramente se instala logo após o desmatamento, e, caso a madeira seja utilizada para uso produtivo, o que ocorre é o uso do carbono – antes CO2, agora em forma sólida – para outra realidade ou serviço.

O estudo alerta para o fato de que o desmatamento é realizado, na maioria das vezes, por exploradores ilegais de madeira e, como regra, é seguido pela pastagem, nem sempre para a produção. Portanto, a alocação para a atividade de produção de soja em alguns cálculos de pegada de carbono é questionável.

O uso adequado do solo pode ser uma fonte potencialmente forte de sequestro de emissões. O produtor que trabalha bem o solo com plantio direto e rotação de culturas para colher o grão de soja pode “sequestrar” carbono da atmosfera de várias maneiras. Além disso, a produção de alimentos no mundo tropical pode adicionar um “crédito” de carbono ao solo.

Dessa forma, o estudo conclui que é errado atribuir, por definição, emissões de carbono à produção de alimentos, como a soja. Com mais frequência e probabilidade, o uso do solo para produção de alimentos pode contribuir para o sequestro de carbono, desde que sejam utilizadas técnicas produtivas sustentáveis.

O viés contábil da agenda climática cria uma fronteira aberta para a transferência de responsabilidades dos ricos para os pobres. Parte da sujeira é jogada no colo do terceiro mundo, produtor prioritário de alimentos, enquanto a pressão dos ricos, produtores ou dependentes de energia suja, sobre si mesmos é aliviada. A petrolífera norueguesa é uma forte candidata a ser superverde.

Em segundo lugar, o viés contábil cria diferentes encargos ambientais para países produtores de petróleo e países agrícolas. Se os países membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) aumentarem a produção de petróleo porque o mundo precisa de mais energia para enfrentar os transtornos de uma guerra, como agora, quem pagará a “conta do carbono”? Países consumidores de energia, principalmente.

De acordo com Daniel Vargas, pesquisador da Faculdade Getúlio Vargas, esse aumento da produção gerará divisas e desenvolvimento econômico e terá pouco efeito sobre os compromissos dos países produtores de petróleo em sua agenda verde.

“Se a produção de alimentos aumenta nos países exportadores devido à fome gerada pela guerra ou porque a população mundial deve chegar a 9 ou 10 bilhões nas próximas décadas, quem deve pagar a conta do carbono para produzir mais alimentos para alimentar o mundo?”, indaga.

Ele ainda destaca que os países exportadores de alimentos, para cumprir suas metas, terão que sacrificar a expansão de seus setores energético, industrial e de transporte e, consequentemente, seu desenvolvimento econômico para “fechar a conta”.

“São dois pesos e duas medidas, com graves consequências para o futuro do planeta. A contabilidade climática corre o risco de “taxar” a produção agroalimentar com o carbono da produção, registrando na conta do produtor rural – e dos países em desenvolvimento, tipicamente exportadores de alimentos – o ônus da descarbonização”, ressalta.

Nesse regime de inconsistências, não é de estranhar que os países produtores de alimentos sejam injustamente vistos como vilões do mundo, enquanto os países produtores e processadores de petróleo – de longe a principal causa dos problemas climáticos do planeta – caminham para se tornarem modelos de sustentabilidade global. O problema, no fundo, é técnico: as normas contábeis precisam ser alteradas.

Na forma, porém, a mudança dependerá da capacidade da política em revelar as preferências injustificáveis do modelo. Três caminhos devem ser considerados para corrigir a contabilização de emissões entre produtores de petróleo e alimentos.

Soluções

Solução 1 – Contabilidade no consumo: Quem consome energia ou comida paga carbono. Quem produz é “isento” – ou melhor, responsável apenas pela gestão. Nesse caso, países produtores de alimentos, como o Brasil, deixariam de ser responsáveis pelas emissões de carbono do produto.

Os países consumidores, como os da Europa, devem contabilizar as emissões, assim como fazem com outros setores. Nos casos em que o país produtor de alimentos, pela força de sua produtividade, produz reduções adicionais nas emissões de carbono para a atmosfera, como o Brasil, esse ganho também deve ser subtraído da conta de emissões do país produtor e transferido para o conta dos países consumidores.

Solução 2 – Contabilidade na produção: Quem produz energia ou alimentos paga pelo carbono. Aqui, a base contábil do petróleo seria alterada para contabilizar o teor de carbono do produto. O consumidor estaria “isento”. Já acontece com a agricultura e vai acontecer com as petrolíferas.

Solução 3 – Negociação produtor-consumidor: modelo em que produtores e consumidores negociam um acordo que inclui compromissos e metas de redução das emissões de carbono da produção.

Nesse caso, cada país ou empresa teria que mostrar suas emissões, as medidas que está tomando para reduzi-las e a meta que pretende atingir. É preciso ressaltar que o atual modelo de contabilidade climática não é justo com os países em desenvolvimento, que são os mais afetados.